Especial 'Falas de Acesso' traz experimentos sociais e acessibilidade na exibição

Rafa Muller, Haonê Thinar, Eduardo Sterblitch, Daniel Gonçalves, Leilah Moreno, Pedro Henrique França e Letícia Colin. Foto: Globo/ Lucas Seixas  

''As pessoas com deficiência são aquelas que têm impedimentos de longo prazo de natureza física, intelectual (mental) ou sensorial (visão e audição) os quais, em interação com diversas barreiras, podem obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas''. O texto é parte da Convenção dos Direitos das Pessoas com Deficiência, da ONU (Organização das Nações Unidas). No Brasil, mais de 15 milhões de cidadãos têm uma deficiência. São pessoas que vivem incontáveis anos de luta e invisibilidade.
 
Com o objetivo de transformar o olhar da sociedade, na semana que marca o Dia de Luta da Pessoa com Deficiência (21 de setembro), a TV Globo exibe, no dia 23, o especial 'Falas de Acesso', apresentado pela jornalista Flavia Cintra, com direção artística de Patricia Carvalho, direção de Pedro Henrique França e Daniel Gonçalves, e roteiro de Malu Vergueiro. E o especial trará mais acessibilidade na exibição. Além de abordar o assunto no programa, o conteúdo poderá ser consumido por todas as pessoas, já que, além da opção do Closed Caption, disponível em 100% da grade, haverá a opção de audiodescrição, complementando o compromisso semanal de mais de 30 horas de conteúdos com a função na grade, e o recurso de Libras, cumprindo completamente seu papel de ser um conteúdo totalmente acessível para todos os nossos espectadores. 
 
Inspirada no lema da ONU, “Nada sobre nós, sem nós”, a diretora artística Patricia fez questão de montar uma equipe diversa e pronta para contribuir com muito ensinamento no especial, que tem como missão ser didático e provocador, gerando identificação, reflexão e transformação no público. 
                               
A busca da direção por um grupo diverso, com quem pudesse ter trocas constantes, foi determinante para este projeto acontecer. Desta forma, antes mesmo de o especial ir ao ar, a diversidade levou toda a equipe envolvida a um rico aprendizado, que será refletido nas telas, em um produto autêntico pela originalidade como aborda o tema e pelo envolvimento dos consultores que participaram de sua concepção. “Não teve um dia em que eu não tenha aprendido uma coisa nova. Nosso time de consultores com deficiência fez propostas provocativas justamente com a intenção de levar à reflexão e à mudança de comportamentos tão naturalizados. Estou orgulhosa de dirigir um especial que pode levar informação e mudança para espectadores que não convivem com pessoas com deficiência e sabem muito pouco deste universo. Temos muitos profissionais com deficiência no projeto. Os diretores Daniel Gonçalves e Pedro Henrique França, a Flávia Cintra e as consultoras Camila Alves e Priscila Siqueira, incansável também como produtora, e o editor de imagens Diego Vidal de Belo Horizonte. Também convidamos a artista Ana do Vale para fazer trabalhos e ser consultora da identidade visual do especial. Além disso, temos pais atípicos na equipe. Essas são as pessoas por trás do vídeo e na tela terá muito mais”, conta ela.
 
É comum observar uma narrativa sobre pessoas com deficiência voltada para o sentimento de piedade e para a ideia de superação. Este é um ponto citado por quase todos os profissionais envolvidos no projeto, diante do que é visto nas produções de audiovisual, em informações sobre o universo de pessoas com deficiência ou em falas cotidianas.  “No dia a dia, as pessoas não sabem como falar, e na tentativa de não serem mal-educadas, buscam palavras para atenuar a deficiência. "Portador", "especial", ou frases como: "nem parece", "mal dá pra perceber" são usadas para se dirigir a uma pessoa com deficiência. O que nos falta, como sempre diz a nossa roteirista Malu Vergueiro, é letramento, saber o que dizer, entender que situações e palavras são capacitistas. Acho que, como eu, as pessoas sem deficiência vão se dar conta de que achavam que estavam agradando, mas na verdade, estavam ofendendo. Não queremos deixar para estas pessoas um vazio de palavras. Queremos ser didáticos, e ninguém melhor do que as próprias pessoas com deficiência para nos ensinarem”, afirma ela.
  
Pode parecer corriqueiro, mas a importância da troca e escuta da equipe foi um dos pontos que se destacaram para o diretor Daniel Gonçalves, em sua primeira experiência no projeto. Os profissionais com quem Daniel trocou ao longo do caminho estiveram disponíveis para suas ideias e escolhas. Além de dirigir, ele também atuou e destaca ainda a inovação do especial que traz um novo olhar na forma de retratar o grupo de pessoas com deficiência. “As trocas com todas as pessoas foram muito boas, em um lugar de muita escuta por parte das pessoas sem deficiência da equipe. Patrícia Carvalho me deu toda a liberdade para propor e criar nos experimentos que dirigi e ainda me convidou para dirigir cenas que não estavam previstas inicialmente. Estávamos muito afinados e empenhados em fazer dar certo. Este será um programa inovador pela maneira como as pessoas com deficiência serão retratadas, fugindo dos estereótipos do coitadinho ou do arauto da superação. Nós, pessoas com deficiência, somos o grupo mais subrepresentado de todos. A deficiência atravessa todos os outros grupos. Existem mulheres com deficiência, indígenas com deficiência, pessoas LGBTQIAPN+ com deficiência, pessoas negras com deficiência, jovens e idosos com deficiência. E todos esses grupos estarão representados de alguma maneira no especial”, ressalta Daniel.
 
Dividindo a direção com Daniel, Pedro Henrique França traz sua expertise como contribuição no trabalho. Além de diretor, ele também assina os esquetes de humor do especial e atua ao lado dos atores Leticia Colin e Eduardo Sterblitch, em participação especial, e do diretor Daniel Gonçalves. Pedro acredita na dramaturgia como um instrumento poderoso na formação das pessoas, que assim como ele, têm nesse canal uma fonte de aprendizado e transformação. “Posso dizer que a minha experiência foi completa em muitos sentidos. Eu estive na equipe de criação do formato, e assino e dirijo o núcleo de esquetes, a nossa célula de dramaturgia dentro do ‘Falas’, além de atuar em uma delas. Me emocionei diversas vezes no set dirigindo tantos atores com deficiência. Dirigir o Daniel como ator foi maravilhoso. A ficha ainda não caiu, confesso. Parecia um sonho tão intangível. E de repente lá estava ele, sendo realizado. Foi lindo. Desde o início, quis que a gente tivesse leveza. A dramaturgia tem um papel historicamente muito importante. Eu me formei e ainda me formo nela. É importante abrirmos o canal de comunicação. Estamos na maior emissora do país. Por mais que nós, pessoas com deficiência, estejamos no mundo desde que ele existe, a palavra capacitismo, nome dado ao preconceito às pessoas com deficiência, ainda está muito longe do vocabulário popular. E ainda está muito longe da dramaturgia e do audiovisual como um todo. Demos um passo muito importante nesse sentido”, reforça ele.
 
Escolhida para ser a apresentadora do ‘Falas de Acesso’, a repórter do Fantástico há 14 anos, Flávia Cintra, contribui com o projeto pelo seu envolvimento na causa anti capacitista e na experiência de vida ao longo dos anos, com domínio das leis, da história, das pessoas, vertentes, discussões e polêmicas envolvendo o assunto. Patricia destaca a condução de Flávia representada por muita leveza, paciência e propriedade na condução das situações enfrentadas. “O conhecimento dela vem de uma vivência de anos, de muitos debates, leituras, ciclos e um número exponencial de experiências fora e na frente do vídeo. A Flávia tem uma característica que eu considero essencial para quem pretende ser um bom comunicador. Ela escuta de forma a entender o que a pessoa quer dizer mesmo quando está diante de uma tese errada. Com essa tática, ela percebe onde está o "buraco", qual informação aquela pessoa precisa para que entenda o ponto de vista dela. Ela tem uma frase muito boa, entre tantas: “Às vezes eu queria construir uma rampa no cérebro das pessoas". Acho que ela nem se dá conta, mas já faz isto”, conta Patricia.
 
Para Flávia, foi preciso disfarçar a emoção ao receber o convite para o especial. Ao participar de uma reunião de conteúdo a pedido de Patricia, a apresentadora percebeu a entrega da equipe na busca por uma melhor forma de inserir a representatividade no projeto, e logo se sentiu parte do grupo, mas ainda assim a notícia foi uma surpresa muito bem-vinda. “Conheci o time de consultores, as equipes de produção e redação em uma reunião de conteúdo, a convite da Patricia, e já me senti parte do time nos primeiros minutos. Foi muito bacana ver o cuidado em garantir a representatividade de profissionais com deficiência em todas as camadas do trabalho. Temos pessoas com deficiência na consultoria, na direção, na produção de conteúdo e protagonizando todos os momentos do programa. O convite veio depois dessa reunião e foi uma surpresa que me encheu de orgulho. Deu um frio na barriga, mas eu tentei fingir costume e topei na hora”, diz ela.
 
A apresentadora espera que o público se conecte e se emocione ao assistir, sem um tom piedoso. Ela acredita ainda que o especial abre caminho para outras edições do projeto e o considera um passo importante da TV Globo no avanço do desenvolvimento inclusivo, para dentro e para fora da empresa. “Quando o espectador assistir, não será aquela emoção piedosa. Ela virá da identificação, da indignação, do riso, das nuances humanas que serão apresentadas de diferentes maneiras ao longo do programa, pautado na vida real das pessoas com deficiência, que conta as nossas histórias sob o nosso ponto de vista. Para a gente que vive o dia a dia aqui dentro, na TV Globo, fica cada vez mais claro que a diversidade está definitivamente assumida como valor e que a inclusão entrou na estratégia da empresa num caminho sem volta. Vejo a empresa refletindo essa mudança acelerada que está acontecendo na sociedade e é nosso papel retratá-la também no conteúdo que apresentamos ao público. O ‘Falas de Acesso’ faz parte de tudo isso”, conta ela.
 
Todas as ideias discutidas na pré-produção, fruto de muita troca do grupo, foram inseridas no roteiro por Malu Vergueiro, que assina o especial. Malu também assinou o ‘Falas da Terra’ (2022) e é responsável pelo roteiro do ‘Falas da Vida’ deste ano. Sua função é dar voz a quem de fato precisa falar. “No caso do ‘Falas de Acesso’, pelo fato de eu não ser uma pessoa com deficiência, tenho total consciência que essa fala não é minha. Por isso, entendo que o meu papel como roteirista neste projeto foi ajudar a colocar em linguagem de TV o que essas pessoas têm a dizer. E isso elas têm muito. Uma das maiores missões do especial é a transformação desse olhar”, relata Malu.
  
Diretora de programação da TV Globo, Leonora Bardini ressalta que o projeto fica mais amplo para abranger novas camadas de diversidade. “Com o ‘Falas’ buscamos, a cada ano, ampliar o debate em torno de temas importantes para a sociedade, através de conteúdos que provocam a reflexão. Isso sem deixar de lado a leveza e o entretenimento que engaja, levando às salas de casa ou às rodas de conversa novos pontos de vista e promovendo o diálogo. O ‘Falas' para marcar o Dia Nacional da Luta da Pessoa com Deficiência surge como um marco importante do projeto na TV aberta, ao contemplar uma parcela da população pouco representada no audiovisual. Com mais essa iniciativa, reforçamos o objetivo da Globo em ter diversidade e múltiplas representações em seus conteúdos e em sua programação”, destaca Leonora.
   
Experimentos sociais, entrevista, Povo Fala, intervenção urbana e esquetes de humor fazem parte do especial
 
Ao longo do programa, o público assistirá a experimentos sociais que envolvem questões de preconceito, capaticismo, invisibilidade/ experiência de não pertencimento, e acessibilidade/ exclusão. Em um desses momentos, Flávia Cintra participa da gravação em que um participante é convidado para um restaurante, onde todas as pessoas têm alguma deficiência, menos ele. Em uma situação como essa, como você se sentiria? O objetivo é fazer o público chegar perto da sensação de exclusão da pessoa com deficiência quando se vê diante de tanto descaso sobre seus direitos e de tanta indiferença por parte da população.
 
Segundo a roteirista Malu Vergueiro, assim como o didatismo, a identificação foi uma das premissas na hora de fechar o recorte do conteúdo do programa. “A ideia é que o público se reconheça em certas falas e situações corriqueiras do cotidiano, que serão reproduzidas não só nos experimentos sociais, mas em outros momentos do especial. Queremos que a pessoa chegue ao final do programa com muito aprendizado na bagagem. “Então é errado falar que a pessoa com deficiência é especial? Eu não sabia, mas agora entendi…”, conta Malu. 
 
Para Flávia Cintra que participou do processo, os experimentos sociais propõem a reflexão sobre a como é ser julgado e excluído por conta de uma única característica. “Nós, que temos alguma deficiência, vivemos isso todos os dias. Não dá para simular como é viver com uma deficiência porque isso não é factível, mas dá para experimentar um pouco da sensação de não ser considerado, de ser invisível ou de não caber nos espaços que deveriam ser pensados para todas as pessoas. Tem sido muito interessante assistir o momento em que essa ficha cai para os participantes. Tenho a impressão de que o público vai se surpreender”, comenta Flávia.
 
Outro experimento criado para especial é representado pela atuação da comediante Tata Mendonça. Pessoa com deficiência visual, ela pede que participantes leiam mensagens recebidas no perfil pessoal de sua rede social. Para justificar a solicitação, ela diz que o aplicativo do celular, responsável por transmitir as mensagens, está com problema e por isso não consegue saber o conteúdo. Diante de palavras agressivas e críticas gratuitas, os participantes vão ler, omitir o conteúdo, e oferecer palavras de afeto e incentivo a ela.
 
O influenciador Ivan Baron também participa do especial e vai para as ruas de São Paulo, onde coloca a população diante de uma questão óbvia: O que é mais universal em termos de acesso? Uma rampa ou uma escada? Entre as duas, para qual você costuma se direcionar? Lendo assim parece simples, mas quando você está na companhia de uma pessoa com deficiência ou é a pessoa com deficiência, percebe que o problema é bem maior, falta o básico: o direito de ir e vir.    
 
E para fazer um contexto histórico, apresentar os movimentos sociais e abordar temas como conquistas, leis, autonomia, inclusão e terminologia, a especialista Izabel Maria Loureiro Maior, líder do movimento político das pessoas com deficiência, que participou dos debates da Assembleia Nacional Constituinte Constituinte (1987-1988) e da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência pela ONU, ratificada no Brasil em 2008 com status constitucional, foi convidada a participar. Médica, professora e ativista do movimento social das pessoas com deficiência, foi a primeira pessoa com deficiência a comandar a Secretaria Nacional de Promoção dos Direitos da Pessoa com Deficiência e é liderança há mais de trinta anos do Movimento das Pessoas com Deficiência.
 
Esquetes de humor também serão apresentadas. Com roteiro assinado por Pedro Henrique França e participações de Leticia Colin e Eduardo Sterblitch, além do próprio Pedro e do diretor Daniel Gonçalves, entre outros atores com deficiência, o público vai poder refletir sobre situações do cotidiano de pessoas com deficiência em eventos, como balada e casamento, assim como em um ambiente corporativo. “Ter Leticia Colin e Eduardo Sterblitch, dois gênios que eu admiro tanto, contracenando com todos os atores com deficiência, incluindo eu, foi quase surreal. Mas foi real e ainda custo a acreditar que conseguimos realizar. Botar esses corpos juntos em cena é chacoalhar o audiovisual para mostrar que isso é possível, que isso é necessário e que não precisamos de atores sem deficiência pra encenar as nossas vivências. Nossas histórias estão sendo escritas, dirigidas e protagonizados em primeira pessoa nesse programa. Isso é radicalmente revolucionário”, revela Pedro.

Anderson Ramos

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