Mulher trans e funcionária da ONU: conheça Ariadne, personagem do especial 'Falas de Orgulho'

Divulgação Globo

A mulher que tem o cargo mais alto na ONU a ser ocupado por uma pessoa transgênero: essa é Ariadne Ribeiro. Mas a jornada para chegar até a posição em que se encontra hoje não foi nada fácil e passa por uma série de agressões físicas e verbais, abuso sexual, HIV e prostituição. A virada foi difícil, mas só foi possível a partir da educação e de muita força. "Nunca fui de me colocar como uma vítima da sociedade. Eu seguia o conselho da minha mãe: engole o choro e vai. Mostrar fragilidade diante do inimigo é uma fraqueza", conta. Assessora de apoio comunitário do UNAIDS, programa da ONU que objetiva o fim da AIDS através da redução das desigualdades, Ariadne é uma das personagens de 'Falas de Orgulho', especial que a Globo exibe no próximo dia 28, Dia Internacional do Orgulho LGBT.
 
Com jeitos, gostos e expressões femininas, Ariadne conta que sempre soube que era uma mulher. Aos quatro anos de idade, a paulistana já começou a questionar sobre o seu corpo. A partir dos 11, com sua identidade de gênero mais aflorada, foi quando começaram os abusos. Com a mãe pouco presente, ocupada com o trabalho e tarefas domésticas, Ariadne encontrou na irmã mais nova o seu primeiro acolhimento. "Eu falava 'acho que Deus me fez errado porque eu sou uma menina' e ela me abraçava. Esse era o nosso segredo'", revela.
 
Já na época da escola, Ariadne lembra que chegou a ser espancada por conta de sua aparência mais feminina, episódio que a fez desistir dos estudos por um tempo. E foi só com muita perseverança que Ari conseguiu concluir o segundo grau e conquistou bolsa para a faculdade. Hoje, graduada em pedagogia, com mestrado e doutorado em psiquiatria, a assessora da ONU relembra a luta de procurar emprego sendo uma pessoa trans: "O momento de apresentar a documentação era um problema muito grande porque, independente do quão competente eu fui nesse processo seletivo, quando a pessoa via um nome masculino no meu RG, eu era descartada sem possibilidade de reconsideração", finaliza.
 
Na entrevista abaixo, Ariadne conta sua trajetória e comenta as diferentes camadas de preconceito que sofrem as pessoas LGBTQIA+.
 
Entrevista com Ariadne Ribeiro
 
Conte um pouco sobre a sua história e sobre quando começou a se entender LGBTQIA+.
Comecei a questionar a minha sexualidade aos quatro anos de idade, quando a minha irmã nasceu. E foi como se eu tivesse me reencontrado. Antes dela, eu só tinha um irmão mais velho e brincar com ele era muito difícil, eu não gostava. Já brincar com a minha irmã era a forma que eu tinha de esquecer de tudo. Eu falava: "acho que Deus me fez errado porque eu sou uma menina", e ela me abraçava. Esse era o nosso segredo. À medida que fui crescendo, a minha identidade de gênero foi se aflorando mais. E aí começaram os abusos. O meu padrasto me abusava física e psicologicamente. Essa foi uma época muito difícil pra mim. Aos 13 saí de casa e fui morar com a minha avó. Ela era muito à frente do seu tempo e tinha uma amiga trans, a Zezé, que era cabeleireira e chegou a precisar se prostituir para conseguir pagar as contas. Sumiu por um tempo e, quando reapareceu, estava linda, casada e morando no exterior. Ela me contou essa história para me mostrar a dura realidade que eu teria de enfrentar, mas ao mesmo tempo ela não queria que eu perdesse a esperança de um final feliz. Eu sempre me senti mulher e sempre tive expressões muito femininas. E foi por isso que fui tão espancada na minha infância. E era algo que eu não conseguia controlar, simplesmente pela expressão natural de quem eu era. 
 
Quando criança, mais nova, você chegou a passar por alguma situação na escola?
Sim, com 13 anos eu já tinha uma aparência muito feminina e isso causou problemas na escola. Teve um dia em que fui espancada, espancada mesmo. Fiquei quase desacordada na porta do colégio. Foi um bafafá tão grande que eu parei de estudar. E só voltei anos depois, pelo Telecurso. Eu sempre gostei de estudar, sempre fui CDF, nerdzinha. Fiz a prova de conclusão do segundo grau, conferi as respostas e eu tinha ido muito bem. Quando fui buscar o resultado, a minha prova tinha sido cancelada porque eu tinha assinado com o meu nome social. No ano seguinte, fiz a prova novamente e eu estava tão preparada que passei no vestibular e ainda consegui bolsa integral para cursar pedagogia. 
 
Como as pessoas transgênero são vistas dentro da nossa sociedade?
As vivências das pessoas trans são únicas, cada um tem a sua. Eu sempre tive uma boa passabilidade, o que me trouxe coisas positivas e negativas. Tem o lado "positivo", já que confere uma repressão menor da sociedade contra você. Mas ao mesmo tempo tem o lado negativo, o da "surpresa" das pessoas quando "descobrem". E essa surpresa vem com uma discriminação muito forte, como se você estivesse enganando as pessoas. Era muito difícil o momento em que elas olhavam para o meu RG e viam um nome masculino. Isso gerava muito constrangimento. Na hora de procurar emprego, por exemplo, o momento de apresentar a documentação era um problema muito grande porque, independente do quão competente eu fui no processo seletivo, quando a pessoa via um nome masculino no meu RG, eu era descartada sem possibilidade de reconsideração. Mas nunca fui de me colocar como uma vítima da sociedade. Eu seguia o conselho da minha mãe: engole o choro e vai. Mostrar fragilidade diante do inimigo é uma fraqueza.
 
Qual é a sua visão da luta LGBTQIA+ atualmente? O que falta conquistar?
Primeiro, a gente ainda tem que lutar muito pelo respeito, pela nossa existência. Isso é sintomático de uma sociedade que não supera o período colonialista. São pessoas que querem colonizar outras, que acham que têm direito sobre outras. E isso vai desde prescrever o que é homem e o que é mulher na sociedade até o que é ser LGBT. A complexidade da diversidade é inaceitável para quem precisa impor regras para a maneira como o outro vive. Em uma sociedade que sempre foi oprimida e aprisionada em regras e ditames morais, o sonho do oprimido é ser o opressor. Então, ela reproduz essa violência. É inconcebível que ainda existam pessoas que tentam usar a religião para ofender outras pessoas pela forma como elas são. É inconcebível que ainda tentem nos inferiorizar. É inconcebível que a gente ainda tenha a necessidade de forçar a justiça a nos dar nossos direitos. Acho que a nossa luta ainda nem começou.
 
Entrevista com Antonia Prado, direção artística:
 
Como foi dirigir o Falas de Orgulho? O que ele representa?
Foi um orgulho (risos), é redundante mas essa é a melhor palavra. Foi uma oportunidade não só de conhecer personagens incríveis, mas também aprender mais sobre a sigla LGBTQIA+, que abraça tanta gente. O projeto traz a oportunidade do brasileiro se reconhecer em pessoas comuns, como eu e você, que estudam, que têm sonhos, que têm dores. Mas também damos voz a assuntos que precisam ser falados e debatidos. E trazemos isso de uma maneira direta e didática, para que quem está em casa possa entender e conhecer um pouquinho mais. Acho importante dizer que essa não é uma luta só dos LGBTs. Essa é uma causa da qual todo mundo faz parte. Temos que comprar essa briga, sim. Só assim vamos conseguir um país mais igualitário e compreensivo para todos.
 
Como foram as gravações?
A gente acompanhou o dia a dia dessas pessoas. Viajamos para a casa delas, conhecemos o seu universo e seus círculos de acolhimento, que não necessariamente são a família de sangue. Muitas vezes esse acolhimento vem dos amigos ou da própria comunidade LGBT. Em um segundo momento, gravamos em estúdio para contar a trajetória completa dessas pessoas, o momento da autoaceitação, de como ela foi abraçada pela comunidade e pelos seus aliados. E foi muito emocionante ver a reação da equipe. Muitos deles ainda não conheciam essas histórias e, ao longo da gravação, vimos os olhos ficarem marejados. Quando finalizamos, os comentários eram "Obrigada, hoje eu saio daqui entendendo melhor a minha prima, a minha tia, o meu irmão...".
 
O que o público pode esperar?
Eu acho que o público pode esperar um programa muito emocionante, divertido, leve e que trata das questões LGBTQIA+ com a maior naturalidade do mundo - porque entendemos que é assim que deve ser tratado. Ser LGBT é só mais um filtro da qualidade dessas pessoas, que também são mães, pais, filhos, primos, amigos, como qualquer um de nós. Tudo isso contado de forma que o brasileiro possa entender, reconhecer e se encontrar nessa sigla LGBTQIA+. Só através da educação e do respeito que o Brasil será um lugar mais justo de se viver.
 
Entrevista com Washington Calegari, direção:
 
Como foi dirigir o 'Falas de Orgulho'?
Dirigir o ''Falas de Orgulho' foi uma oportunidade de levar para a televisão aberta as histórias de brasileiros que, como tantos outros, têm de enfrentar uma luta diária simplesmente por serem quem são. Buscamos histórias de pessoas comuns: que lutam, trabalham, têm sonhos, desejos e que têm família, mas que, pelo simples fato de serem quem são, enfrentam muitas dificuldades. Acho que esse especial é muito importante porque o público vai poder assistir, conhecer e se emocionar com essas histórias. A nossa missão é chegar no coração dessas pessoas.
 
Qual é a importância do especial?
Acho que é importante mostrar que tem espaço para todo mundo ser feliz. É muito difícil de conceber que em 2021 as pessoas ainda sejam julgadas pelo que elas sentem ou por quem elas amam. Cada um precisa aprender a respeitar os sentimentos do outro, só assim o amor prevalece  e a vida em sociedade fica melhor.
 
Como foi a escolha dos personagens?
Todos os personagens têm histórias de muita força, resistência e superação. As histórias que a gente escolheu para o 'Falas de Orgulho' representam a vida de milhões de brasileiros. Essas pessoas, independente de quem elas amam, são seres humanos que estão lutando, batalhando e  que têm sonhos. O nosso papel é mostrar que a gente não deve julgar as pessoas por nada, muito menos por um aspecto que diz respeito somente à vida dela, como a orientação sexual e a identidade de gênero.
 
Entrevista com Carlyle, roteiro:
 
Qual é a importância do 'Falas de Orgulho'?
O 'Falas de Orgulho' é um projeto que tem a proposta de dar voz a pessoas que historicamente foram silenciadas por conta da sua identidade de gênero e orientação sexual. A nossa proposta é mostrar que essas são pessoas comuns: trabalhadores, mães, pessoas que querem formar uma família, como qualquer outra. Uma coisa que acho importante destacar nesse projeto é que é impossível não se emocionar. A gente vai ouvir histórias de LGBTs que sofreram bastante, mas que conseguiram ressignificar todo esse processo de dor e de tristeza que enfrentaram ao longo da vida e que seguem na batalha e na correria do dia a dia.
 
Como foi a escolha dos personagens?
Quando começamos o processo de pesquisa, o nosso primeiro critério era ir em busca de boas histórias, independente da orientação sexual e identidade de gênero. E a gente conseguiu fazer isso. Temos histórias que não só são emocionantes, mas também falam sobre representatividade. Quem está do outro lado assistindo vai se reconhecer ali de uma forma muito bonita e respeitosa. Essas pessoas batalharam muito para chegar onde elas chegaram, não só para conquistar o respeito por sua identidade de gênero e orientação sexual, mas também para conquistar respeito em suas profissões ou dentro de suas família. São histórias que têm em comum essa batalha que não só passa pela luta por direitos que historicamente foram e são negados, mas também por reconhecimento e pela batalha do dia a dia para conseguir estudar e trabalhar.
 
O projeto
 
'Falas de Orgulho' mostrará a jornada de oito personagens de diferentes idades, regiões, trajetórias de vida e religiões – e por trás delas, histórias de superação, preconceito e auto aceitação, passando por temas transversais às letras que formam a sigla LGBTQIA+ – que culminam na celebração de poder ser quem se é e na exaltação dessas vozes. O especial tem direção artística de Antonia Prado, direção de Washington Calegari e roteiro assinado por Carlyle Junior, com produção de Beatriz Besser. Rafael Dragaud é o diretor executivo e Mariano Boni, diretor de gênero. O especial vai ao ar no dia 28 de junho, logo após 'Império'.

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